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O sagrado e o profano no carnaval de Mariana

Enquanto algumas pessoas se divertem na folia das ruas e praças da Primaz de Minas, outras preferem se concentrar em momentos de oração, reflexão e purificação.

 

Por Eliade Lisboa, Letícia Freitas e Lucas Menezes

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O cenário histórico de Mariana ganha elementos da folia | Foto: Eliade Lisboa

#PraTodosVerem: No centro da foto há uma igreja católica, branca com detalhes em bege, com duas torres de sinos nas laterais e uma cruz no meio do telhado central em duas águas. À frente da igreja, do lado direito, há fitas coloridas metalizadas e ao fundo um céu parcialmente nublado.

Neste ano, o Carnaval de Mariana aborda o folclore local com o tema “Fantasias da nossa história”. A edição da folia, que acontece de 8 a 13 de fevereiro, traz lendas locais como “Caboclo D’água”, “Maria Sabão” e “Noiva de Furquim” para o Centro Histórico da cidade. A temática mexe com o imaginário popular ao resgatar parte da cultura marianense. 

 

Algumas lendas retratadas carregam, ainda, aspectos da religiosidade tradicional, o que afeta parte da população da cidade justamente pela forma como se deu a construção cultural de Mariana em berço católico. Um exemplo disso é a alma penada da Procissão das Almas, mais uma personagem das lendas que se destaca no Carnaval de 2024. 

 

A alma penada ilustra a relação da cidade com a Igreja Católica e sua história é contada há mais de 35 anos. A procissão surgiu como uma forma de satirizar a igreja, pois utiliza os moldes das procissões católicas, só que para cultuar a morte. Caracterizada como uma comemoração pagã, a Procissão das Almas acontece na madrugada da Sexta-Feira da Paixão para o Sábado de Aleluia. Os moradores da cidade vestem túnicas brancas e saem pelas ruas carregando velas acesas, correntes e caveiras, além de entoar cantos fúnebres celebrando os mortos e marcando o início da quaresma para os marianenses.

 

Mas essa não é a única relação entre o carnaval, as crenças populares e as devoções. De acordo com José Morais, teólogo e Mestre em Teoria Literária e Crítica da Cultura, embora não seja a única hipótese, considera-se que o carnaval tem sua origem e desenvolvimento nas festividades pagãs tradicionais da Roma Antiga.

 

O carnaval pode ter sido influenciado, dentre outras, pelas Saturnálias, festival realizado pelos romanos antigos para celebrar o que chamavam de "renascimento" do ano; pelas Lupercálias, festa anual que acontecia para garantir fertilidade, proteger a cidade e espantar os maus espíritos; e pelos Bacanais, festas realizadas em honra ao deus romano Baco, deus do vinho e dos prazeres. Todas essas festas eram marcadas pela liberdade e as celebrações duravam dias, em um movimento que remete ao carnaval de hoje.

O estudioso ainda acrescenta que, mais especificamente “as Saturnálias, dedicadas ao deus Saturno em dezembro, caracterizavam-se pela inversão temporária das normas sociais, permitindo banquetes e festividades. Essa inversão de papéis e liberação temporária de restrições sociais possivelmente influenciaram a natureza festiva do Carnaval”.

 

Padre Leandro Ferreira Neves, historiador e Diretor do Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana, ainda traça um outro paralelo entre a Idade Média e o carnaval, quando a festa já possuía um caráter pré-quaresmal, um período de grande festa que antecede o silêncio e reflexão da quaresma.

 

“Desde a Idade Média, especialmente, era costume, durante estes dias, realizar grandes festas, que combinavam elementos de circo, fantasias e máscaras, oportunidade de extravasar na alegria e no excesso de alimentos e bebidas, que conduziam depois à grande austeridade da Quaresma”, explica padre Leandro.

Influência Católica

A folia, como conhecemos hoje, surgiu por influência da Igreja Católica em uma tentativa de amenizar as festas pagãs e os prazeres da carne, característicos dessas comemorações. Por ser uma festa com data móvel, a definição dos dias para a realização do carnaval em cada ano é determinada pelo calendário católico. Assim, a folia acontece exatamente 40 dias antes do Domingo de Ramos e 47 dias antes da Páscoa.

 

A própria etimologia da palavra carnaval, derivada do latim carnem levare ou carnis levale, significa “abstenção da carne”, e se refere ao período de preparação que precede a quarta-feira de cinzas, dia que marca o fim do carnaval e o início da quaresma. O tempo quaresmal é guardado pelos católicos e caracterizado pela abstinência de carne às quartas e sextas-feiras destes 40 dias, como explica o Padre Johny Sales Figueiredo Dias, vigário da Catedral Basílica Nossa Senhora da Assunção.

Para o padre Leandro, “o Carnaval, sendo uma grande festa, seria um modo para se despedir das alegrias e festas mundanas, para poder entrar em um grande período de silêncio e reflexão”. Porém, o padre Jhony considera que o Carnaval perdeu o seu aspecto espiritual de preparação para a quaresma, já que as festas duram para além dos dias postulados no catolicismo.

 

“A preocupação, quando nasceu o carnaval, era um festejar para entrar no tempo de recolhimento. Só que a gente vê que o carnaval hoje se estende ainda depois da quarta-feira de cinzas”, afirma padre Jhony. Ele acredita que o carnaval é mais uma festa de caráter social e civil do que religiosa.

 

Alguns fiéis também apontam que a comemoração se distanciou do seu significado inicial. Sandra Fernandes, católica, moradora de Mariana, acredita que “em comparação com o carnaval de antigamente pra hoje, está bem profano. Vou falar por mim: hoje em dia [o carnaval] é muito liberal”.

 

Diversas paróquias em Mariana utilizam da data para promover missas, durante o chamado “Carnaval com Cristo”, quando os fiéis participam de momentos de louvação, de adoração, de reflexão, além de atividades de lazer. Essas atividades são “mais ligadas à renovação carismática católica, que consegue reunir aí o povo para poder fazer essa festa de carnaval mais culto, mais religioso, mais de animação. Já a adoração, eu creio que, em quase toda paróquia, nós temos”, conclui Padre Jhony.

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Católicos professam a sua fé em missa na Catedral da Sé | Foto: Lucas Menezes

#PraTodosVerem: Sentadas em bancos, dezenas de pessoas assistem à missa na Igreja da Sé, em Mariana. Elas estão de costas para a câmera e de frente para o altar onde a celebração acontece. A igreja é ricamente decorada em dourado e tem um lustre de cristais que pende ao centro.

Começando no sábado de Carnaval, 10 de fevereiro, a Arquidiocese de Mariana preparou um cronograma chamado Adorai 2024. Neste primeiro dia, católicos de diferentes igrejas se encontram na Paróquia Nossa Senhora Aparecida, localizada no bairro Cabanas, para participar de pregações, louvores e atendimentos a confissões. Logo após a Santa Missa, que ocorre às 18 horas, é separado um momento para os jovens se divertirem com o Luau Jovem. 

 

Já na Paróquia Sagrado Coração, que fica no bairro Colina, acontecem missas nos horários regulares, sendo que a celebração de terça-feira é em devoção à Sagrada Face. Aos fiéis católicos que querem fugir da folia, ou que preferem participar também de atividades religiosas durante os dias da festa, não faltam oportunidades, pois “Semana Santa e Quaresma, em Mariana, têm um caráter muito forte. Então, esse tempo de preparação do carnaval, com esse momento de recolhimento, silenciamento e adoração, ajuda bem a mergulhar na Quaresma”, conclui padre Jhony

Do Axé para o carnaval brasileiro

O carnaval também sofreu a influência de crenças e religiões de matriz africana, como o Afoxé, também conhecido como candomblé de rua. Já a Umbanda, religião genuinamente brasileira, formada pelas raízes e crenças dos povos europeus, africanos e indígenas brasileiros, traz em seus preceitos algumas referências comuns ao que a igreja católica diz sobre o carnaval. 

 

Outra manifestação que ilustra bem a presença e influência das religiões de matriz africana na festa, é a escola de samba, enraizada e carregada de elementos da africanidade. Na década de 1930, as sociedades carnavalescas, antes restringida às elites, foram se popularizando na cidade do Rio de Janeiro e consolidando ritmos que incorporaram à festa as raízes africanas, como o samba e os desfiles das escolas de samba, fundamentais no carnaval brasileiro.

 

Diego Santos, que nasceu dentro de um terreiro de Candomblé e atua como Pai de Santo em Mariana, no terreiro Ilê Axé Exu Tata Caveira, afirma que, além do rito de jejum quaresmal, incorporado à umbanda pelo sincretismo religioso, o umbandista precisa de outros rituais necessários para proteção no período de carnaval. “Existem alguns rituais na Umbanda antes de entrar o carnaval. Fazer a limpeza e fechamento de corpo para que a gente não pegue esses espíritos que eram carnais, [que] ficaram maus e [depois de desencarnados] continuaram no mundo”, explica o Pai de Santo. 

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Pai de Santo Diego Santos paramentado para trabalhos espirituais | Foto: Lucas Menezes

#PraTodosVerem: No centro da foto, em frente a uma parede branca, homem negro, de cabelos curtos pretos, blusa branca e colares coloridos, fotografado da cintura para cima.

Nesses rituais, os filhos de santo tomam banhos de ervas de proteção, indicados para cada tipo de pessoa, ou cada tipo de orixá, além de outros procedimentos que são segredos da religião, pois ocorrem em reuniões fechadas exclusivas para os filhos do terreiro. Isso garante para o umbandista uma espécie de escudo de proteção para que ele não fique suscetível a ataques de entidades negativas, chamadas kiumbas, despertadas durante o Carnaval. 

 

Mas, mesmo com a proteção, é necessário evitar os exageros durante as festas, como o uso de drogas ou bebidas alcoólicas, pois “o umbandista, dentro do carnaval, também tem que ter suas proteções, tem que se precaver, não pode ficar muito bêbado e nem usar drogas”, afirma o Pai de Santo. Caso contrário, a pessoa fica vulnerável aos kiumbas, que são “pessoas que já morreram e se tornaram obsessores, e estão aí justamente para sugar suas energias. Se você estiver em um momento frágil, a entidade que te protege se separa de você e fica só o kiumba”, conclui Diego.

A doutrina do Amanhecer

A preocupação quanto aos “espíritos obsessores” que se alimentam da folia não é exclusiva das religiões de matriz africana. Outras manifestações religiosas também compartilham de crenças muito parecidas e até aderem entidades da Umbanda, como Pretos Velhos e Caboclos, como é o caso do Templo Parogã do Vale do Amanhecer, localizado em Passagem de Mariana, distrito da cidade.

 

O Templo existe em Mariana desde 2019, mas o movimento religioso surgiu no Distrito Federal em 1958, o que é considerado recente, apesar de ter conquistado bastante espaço no Brasil e até no exterior. A doutrina que se denomina cristã, mescla elementos do espiritismo, umbanda e até ufologia. Roberto Guedes, morador de Santa Bárbara e Presidente do Templo Parogã do Amanhecer em Mariana, vem todas as quartas e domingos à cidade a fim de realizar trabalhos espirituais. 

Sobre as precauções e restrições durante o Carnaval, a quem segue a doutrina, Roberto explica que não são contrários a nenhum evento e que todos podem participar, desde que seja dentro da legalidade do nosso espírito, sem álcool, sem drogas e sem excessos. “Especialmente no Vale do Amanhecer e nas outras religiões do Vale do Amanhecer, não vai te cobrar nada. Cobrará sim, quando estiver dentro da casa. Aqui, trabalhando para ajudar, você precisa ter um padrão (vibratório). É aquela situação: se você está doente, você não pode curar doenças”, explica Guedes.

 

Os devotos não separam os dias do Carnaval para nenhuma comemoração específica dentro do Templo. Por isso, o local opera em sua normalidade, com reuniões todas quartas-feiras às 19h e aos domingos às 21h. O lugar é aberto para todos que se interessem, não fazendo qualquer distinção de religião. 

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Realização de trabalho espiritual no Templo Parogã | Foto: Acervo/Roberto Guedes

#PraTodosVerem: Na foto aparecem cinco pessoas. No centro, um homem sentado com as duas mãos estendidas para cima, vestindo bata roxa acetinada e calça em tom terroso. Em volta dele há três pessoas em pé paramentadas com roupas coloridas e enfeitadas. Ao fundo, outro homem vestido de preto e branco observa as pessoas.

Os evangélicos

A religião evangélica não tem qualquer conexão direta com o Carnaval, pois não guardam o período da quaresma, o que faz com que a folia não tenha ligação alguma com sua crença. O pastor Jorge Simão, da primeira Igreja Batista de Mariana, tem uma visão que não se distancia muito da perspectiva do padre. Para ele, a data não tem relação com o cristianismo atualmente, classificando a festa como pagã. 

 

O pastor afirmou que não censura cristãos que escolhem participar do carnaval, mas aconselha que os fiéis confiem em seus próprios julgamentos sobre o local que frequentam: “Eu, por exemplo, ensino para as minhas ovelhas a fazer a pergunta: Jesus estaria neste lugar? Se ele achar que estaria, tudo bem. Mas eu não vejo Jesus em meio a um bloco de carnaval, por exemplo. Não consigo enxergar Ele lá“.

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Culto evangélico com o pastor Jorge Simão na Igreja Batista | Foto: Eliade Lisboa

#PraTodosVerem: No centro da foto, ao final de um corredor formado por bancos de igreja, há um homem de pé no púlpito, usando óculos e terno preto. Na sua frente, uma mesa coberta com tecido branco e ornamentos vermelhos, além de um pequeno móvel coletor de dízimo e doações. Nas laterais e de costas para a câmera, diversas pessoas sentadas em bancos enfileirados. Ao fundo há um altar de granito e acima dele uma parede branca com um nicho vazio ao centro.

Para atender aos fiéis que querem realizar atividades religiosas durante os dias de carnaval, a Igreja Batista promove todos os anos um retiro espiritual como alternativa. O evento começa no sábado de Carnaval e termina na terça-feira, e este ano será realizado no bairro Palmeiras de Fora, na cidade de Acaiaca. A Igreja enxerga o momento como uma oportunidade dos fiéis se juntarem e fazerem diversas atividades: “Brincamos, temos os horários de recreação. Nos horários de atividades religiosas, quando a gente se recolhe, procuramos nos aproximar mais de Deus, em oração, em meditação da sua palavra”, indica o pastor.

Liberdade, respeito e tolerância

Com as influências do sagrado somadas à liberdade do profano, o carnaval ainda se mantém a maior festa popular do Brasil. E tal magnitude pode dividir opiniões, principalmente quando se trata de um assunto polêmico e cheio de linhas e doutrinas diferentes como a religiosidade. 

 

A ocultista Marta Maria Rocha, que é professora, prefere ficar em casa durante a festa e afirma: “não gosto de carnaval, não gosto da música, não gosto da farra e nem de muita gente. Só gosto do feriado”. Mas apesar de não cair na folia, Marta defende a liberdade daqueles que optam por curtir a festa, “se é profano ou não, cada um faz o que quiser com o seu corpo”. 

 

A técnica de enfermagem Marilene Almeida da Paz também segue a mesma linha e afirma que é “zero intolerância", pois acredita que “tem que respeitar! Cada um tem o que gosta, faz o que gosta e como gosta”. Marilene é católica e mudou-se da Bahia para cá há um mês. Ela está curiosa para conhecer o carnaval de Mariana: “eu adoro a folia, adoro gente, adoro dançar. Tô curiosa pra ver como é o carnaval aqui”. 

Padre Jhony defende a mesma ideia do respeito ao que o outro deseja fazer: “há quem gosta de festa, de marchinhas. E isso é muito bom. Há também quem gosta de rezar e ficar mais no silêncio, em recolhimento. O que também é muito bom. Eu acho que é importante a gente estar bem, se sentir bem durante o carnaval. Sobre aqueles que vão às ruas, os foliões, eu acho que a gente precisa sempre ter respeito pela sua escolha”.

O fato é que existem praticantes que gostam de festejar e outros que preferem se manter na quietude, e isso é um direito que deve ser respeitado. Desde que haja respeito de ambos os lados, tanto no sentido da tolerância religiosa quanto da liberdade dos corpos, é possível que o sagrado e o profano continuem coexistindo. 

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